Vivemos hoje, como notam os filósofos heideggerianos, em uma civilização eminentemente técnica. A técnica, o desenvolvimento tecnológico, o controle sobre a natureza (até mesmo em sua forma de tentativa de controle da natureza humana, das operações de “mudança de sexo” à decodificação do genoma humano), permanentemente controla até mesmo os fenômenos sociais mais amplos. Isto pode ser visto em manifestações mais grosseiras como as guerras pelo petróleo ou mais sutis como as leves variações nas estratégias de marketing ao longo dos anos, à medida que mudam as expectativas dos compradores em potencial.
De onde vem, contudo, esta técnica? Aonde aponta, onde está? Estas perguntas, a meu ver, só podem ser respondidas dentro de um quadro mais amplo de percepção histórica do processo de transformação da sociedade moderna. Este texto maçante que meus leitores ora folheiam com enfado é uma primeira tentativa minha de lidar com esta questão.
Parece-me que todo o desenvolvimento não apenas da técnica, mas também das formas de pensamento político e filosófico podem ser explicadas de maneira bastante completa se considerarmos em nosso raciocínio a virada espetacular do pensamento cristão clássico para o moderno, que faz com que toda a visão de mundo, de objetivos, de natureza humana e de relação do homem com o resto da Criação, etc., do Ocidente fosse re-orientada, deixando seu eixo anterior (que propunha, baseando-se na concepção aristotélica de ordem, que o fim último de cada ação deva necessariamente corresponder a sua causa primeira para que ela seja ordenada; assim, para que haja ordem tudo deve ir a Deus como fim último por ser Deus o princípio primeiro) e tomando um novo eixo: o homem.
Como ocorreu este processo? Antes de adentrarmos este terreno movediço, vejamos a concepção cristã clássica do homem. Nesta concepção, o homem é; existe o homem, assim como existe cada homem. Eu, meu vizinho, meus amigos, os desconhecidos que habitam terras longínquas, todos são homens, todos partilham da mesma natureza humana, que existe em Deus. Nós, assim, somos homens por termos todos esta mesma natureza, que existe independentemente de nós e de cada um de nós. Existimos, e existimos como homens, por participação na única existência absoluta, a existência de Deus, Que Se apresentou a Moisés como “Eu Sou”. Só Deus é.
A concepção cristã clássica de homem, assim, é uma concepção eminentemente ontológica: um homem é homem por sê-lo; um homem é homem por ter a natureza humana que lhe é anterior. A partir de seu reconhecimento como homem ele pode discernir quais devem ser os seus objetivos individuais e sociais, qual deve ser a sua reação a cada situação dada, etc. Este homem é um rei, e sua situação é diferente da daquele outro homem, que é um monge. Esta moça é uma cozinheira, e sua situação é diferente da de outra moça, que é digamos mãe de família ou freira. Cada homem, cada mulher, terá em comum a natureza humana e terá de diferente aquilo que lhe é próprio a si como indivíduo. Este é rei e como tal deve agir; aquela é cozinheira, aqueloutro monge, estoutra mãe de família... Cada um terá objetivos imediatos e comportamentos desejáveis diversos, decorrentes de sua situação particular. Ai do rei que se queira cozinheiro, ai da cozinheira que se creia rainha!
Por outro lado, a natureza humana de todos eles lhes é comum e isso é muito importante anterior. Todos têm, e devem ter, o mesmíssimo objetivo final, todos devem dar às suas ações (de governo de um reino, de refogado de couve, de educação de filhos, de oração intensiva...) o mesmo fim último: Deus, que é sua causa primeira. O Rei, assim, reina para Deus e procura cumprir o que lhe é próprio fazer como rei; a mãe de família, assim, educa e protege sua prole para Deus, e procura fazer o que lhe é próprio, como mãe de família, fazer. E assim cada um leva a sua vida.
Podemos notar, nesta concepção que é a concepção cristã clássica a imobilidade social e técnica que a caracteriza. Não há razão para que a mãe não queira fazer exatamente o que fizera sua mãe antes dela, assim como não há razão para que o monge de hoje já diferentemente do monge de ontem. Não há razão para que sejam desenvolvidas novas “técnicas” de maternidade, de reino, de vida monástica; não há razão para que sejam inventados novos produtos de consumo, novas técnicas de educação, oração, governo.
Esta diferença, esta ausência do perpétuo mecanismo de suposta “inovação” que caracteriza a sociedade dos últimos séculos, é a primeira coisa a saltar-nos à vista e na maior parte dos casos a causar horror. Como seria possível que a filha não “evoluísse” e persistisse em fazer o mesmo que fez sua mãe? Como seria possível que o rei não passe de rei a presidente, e de presidente, quem sabe, a chefe de conglomerado industrial?
A resposta, porém, não apenas é tranqüilizadora, mas também, espero, apaixonante. Será que toda a sociedade de então era uma sociedade imóvel? Será que não havia movimento algum? Será que os livros didáticos de História hodiernos têm razão ao colocar o auge da civilização cristã como um mero parágrafo sobre o “modo de produção feudal?” Claramente podemos dizer que não. Vemos naquele tempo, por exemplo, o surgimento e o auge de dois tipos de “monumento” que negam de maneira clara este vilipêndio e apontam firmemente para a direção onde ocorria este movimento, direção esta tão superior à tomada pela sociedade moderna que é impossível não reconhecer sua superioridade.
O primeiro destes “monumentos” não é feito de pedras, mas de gente: são as universidades, instituição tipicamente medieval, estabelecidas no Medievo e lá atingindo o seu auge. Uma universidade é um centro de estudos superiores, um lugar onde o movimento intelectual é ordenado e conduzido para que possa florescer ao máximo. Mais adiante trataremos da triste decadência das universidades de então, até chegarem ao ponto lamentável em que ora estão.
O segundo “monumento” é físico, feito de tijolos e do engenho humano: as catedrais. Uma catedral como a de Chartres, ou como a de Notre Dame de Paris, é como que uma flecha gigantesca, um foguete a apontar para o Céu. Aí está a resposta: o movimento, o aprimoramento, o crescimento a ser buscado, dentro da mentalidade cristã clássica, ocorre interiormente. A filha cria seus filhos como sua mãe a criou, mas a filha, como a mãe, dedica-se a buscar a santidade, a tornar-se não uma mãe mais “eficiente” (o que quer que isso possa ser), mas uma mãe melhor, mais sã, mais... santa.
O homem, criado por Deus, anseia por Deus, anseia pelo infinito que é Deus. Apenas em Deus esta sede de infinito pode ser plenamente saciada. Quando ela é dirigida a qualquer outro objetivo, ela se torna inesgotável, insaciável. Não há nada em toda a Criação que possa saciar a sede de infinito do homem.
Deus, porém, saiu de cena no pensamento ocidental. Como isso foi acontecer? Como pôde o pensamento ocidental deixar Deus de lado e abraçar, como sucedâneo patético, a transformação do mundo, o domínio técnico da natureza, da criação?
O primeiro passo rumo a esta horrenda situação em que agora nos encontramos veio de um frade franciscano, Guilherme de Occam (1287-1347). Este lógico aventou e defendeu uma idéia verdadeiramente revolucionária, cujas conseqüências ele jamais seria capaz de perceber. Para Occam, não há o homem: há apenas homens. “Homem” é uma idéia, um conceito aplicável a muitos indivíduos, mas não algo preexistente a cada homem. Há “humanidade” no homem, mas não há “humanidade” que não a que há em cada homem; só há o indivíduo, não o universal. Esta idéia teve conseqüências espantosas ao longo dos séculos, especialmente ao cair no solo fértil das transformações sociais, causadas e causadoras de mudanças de pensamento.
Cerca de século e meio mais tarde, uma nova classe veio juntar-se às três classes em que tradicionalmente esteve “dividida” a sociedade cristã. Além da classe dos homens de armas, da classe dos homens dedicados ao cultivo e da classe dos homens dedicados ao serviço divino (oriundos, por sua vez, das duas outras classes), surgiu a classe dos homens dedicados à busca de riqueza material. Eles não tinham os deveres de defesa cavalheiresca do próximo que eram assumidos pelos homens d’armas, nem os deveres de labor agrícola dos homens da terra; tampouco dedicavam ao culto divino a sua vida. Esta nova classe surgira com o ressurgimento do comércio entre regiões, que estivera suspenso por falta de interesse durante todo o auge da civilização cristã. A princípio eram errantes, passando depois a estabelecer-se nos burgos (pequenas cidades comerciais estabelecidas sob a proteção de um homem de armas). Eles não eram homens de armas, mas tampouco estavam ligados ao cultivo da terra. Malvistos pela sociedade, desprovidos de um lugar na estrutura social de então, muitos deles passaram a tecer complôs e procurar tornar-se o poder por trás do trono.
Surge então o protestantismo, no início do século XVI. É a primeira grande chance deste grupo. O aspecto fundamental do protestantismo, aspecto este que freqüentemente é deixado de lado, é sua concepção eclesiológica logo social. Enquanto para a Cristandade clássica a Igreja logo também a sociedade é necessariamente hierárquica, para o protestantismo não há Igreja preexistente a cada cristão. Igreja é uma união do ser-cristão de cada crente. Há apenas o indivíduo, não uma união que vá além da mera soma destes indivíduos. É o conceito de Occam aplicado à eclesiologia.
Com isso derrubam-se as muralhas que mantinham a sociedade intacta, e começam as convulsões sociais. Para sustentar sua tese fundamentalmente eclesiológica, Martinho Lutero o fundador do protestantismo substitui a Igreja pela Escritura: Sola Scriptura, prega ele. Só a Escritura, a Escritura sozinha, tem tudo o que é necessário para que cada pessoa possa discernir a Verdade e salvar-se. A salvação, no pensamento protestante, não decorre de santificação, sim da “fé”, definida não como assentimento à Revelação mas como confiança na salvação: Sola Fide. Basta crer que será salvo para ser salvo. A salvação não opera através da Igreja, mas por intervenção imediata da Graça de Deus: Sola Gratia.
Os efeitos sociais e políticos deste pensamento são tornados evidentes em muito pouco tempo: convulsões sociais arrastam a Europa; reinos são divididos e re-divididos; os bens da Igreja são usurpados por príncipes sequiosos de poder, auxiliados por burgueses sequiosos de reconhecimento social. O princípio Sola Scriptura revela-se verdadeira Caixa de Pandora, e miríades de seitas com doutrinas radicalmente diferentes começam a confrontar-se.
Um ponto, porém, todas elas têm em comum: a negação do valor e da realidade da santificação do homem. A salvação, ensina Lutero, é um revestimento, não uma melhora real. O homem continua pecador, mas revestido de uma “graça” que não penetra nele; é um monte de esterco coberto de neve branca... ou talvez o exemplo bíblico seja mais apropriado que o de Lutero um sepulcro caiado. Aquilo que era o objetivo de cada homem, aquilo assegurava a cada um a possibilidade de crescer infinitamente sem sair de seu lugar, sem abandonar sua situação na sociedade (ao contrário, aliás: a santificação deve ocorrer em cada situação. O rei, para ser santo, deve ser um bom rei; a cozinheira deve ser uma boa cozinheira, e a mãe ser uma boa mãe...), em suma, a única direção em que poderia ser conduzida e saciada a sede de infinito que tem o homem, desapareceu. Não há mais para onde ir. Não há mais por onde crescer: a ação do homem está trancada no mundo material; sua salvação, quando ocorre, ocorre quase que a despeito dele, e ele não pode nem merecê-la nem perdê-la, pois seus atos de nada valem.
Piorando ainda mais a situação do homem, surge Calvino e sua tese da dupla predestinação. Para este heresiarca, Deus predestina o homem ao Céu ou ao Inferno antes mesmo que ele nasça, e nada, absolutamente nada, pode ser feito. Nem mesmo a “fé” como confiança em ser salvo que Lutero pregava serviria ou deixaria de servir para o que quer que seja. Há ainda no pensamento de Calvino um ponto novo, que fez a alegria dos burgueses (os comerciantes, homens do dinheiro habitantes dos burgos) mais completa: seria possível verificar se somos predestinados ao Céu pelo nosso sucesso financeiro. Para ele, o homem rico, o comerciante endinheirado, é alguém que apresenta sinais de predestinação. Isso, é claro, soou como um brado de convocação a toda a sociedade: divertamos nossos esforços para a busca do dinheiro; ao invés de buscarmos a santidade que de nada serve na medida em que já nascemos predestinados ao Céu ou ao Inferno busquemos a riqueza. É a substituição da busca do infinito em Deus pela busca da conta bancária infinita, logo do conforto infinito, logo da dominação e controle técnicos da natureza (clima, iluminação, saneamento...) crescentes.
Surge então o ideal burguês de conforto, surge então o primeiro antepassado direto do capitalismo. O comércio, de atividade no mínimo indigna quando não francamente pecaminosa (lembremos que a Igreja sempre condenou o lucro...), passa a ser um meio de verificar a predestinação. O conforto material, de perigo à salvação, passa a ser como que a medida do que espera além da morte.
Em breve, contudo, até mesmo a pouca atenção dada à questão da salvação acaba por ficar de lado. Para que serve preocupar-se com algo que não se pode influenciar? A preocupação passa a ser direcionada imediata e finalmente ao conforto material e à busca de riquezas; a religião passa, cada vez mais, a ser vista apenas como na melhor das hipóteses assunto de foro íntimo.
Para este desenvolvimento é fundamental a atuação do pensador francês René Descartes (1596-1650). Meditando em uma sociedade que perdera completamente sua coerência e sua estabilidade anteriores, em uma Europa devastada por guerras religiosas em que nada mais parecia ser certo Descartes decidiu colocar-se em busca da certeza. Seu raciocínio, porém, em nada ajudou a dirimir a confusão anterior. Ao contrário, até, ele a aprofundou tremendamente. Vejamos como:
Partindo do pressuposto de que não há como ter certeza de absolutamente nada (nem mesmo de nossa própria existência, ou de qualquer evidência dos sentidos), Descartes procurou um ponto de partida que fosse absolutamente seguro para, a partir daí, estender seu raciocínio até ter segurança em tudo o que dissesse ou pensasse. Este ponto de partida ele creu encontrar na constatação de que pensava: “cogito, ergo sum” (penso, logo existo). Constatando que pensava (como poderia ter constatado a pressão da cadeira contra seus membros, chegando assim à constatação de que tem existência material; ele não o fez, porém), ele julgou descobrir que existia. Afinal, se ele pensa alguém pensa, e esse alguém seria necessariamente ele. Será, porém, que existe mais alguém? Será que existe uma coisa extensa (um corpo), além da coisa que pensa?
A partir desta primeira constatação, ele descobre em si alguns pensamentos que considera auto-evidentes, anteriores mesmo a qualquer silogística possível. Eles são basicamente a idéia de Deus (seguindo nisso o argumento ontológico de Santo Anselmo) e a matemática. Apoiando-se na idéia de Deus, ele crê poder afirmar a realidade que o circunda: Deus não seria malvado a ponto de enganá-lo. Nota-se que se trata de uma construção bastante frágil, fazendo com que se dependa na prática de uma intervenção divina direta para que se possa ter certeza até mesmo do fato de se ter um braço ou uma perna. Apoiando-se na idéia da matemática como meio seguro de perceber a realidade, ele procura ver o mundo em termos matemáticos.
Isto causa dois problemas gigantescos, que até hoje assolam o Ocidente. O primeiro deles é a falsa segurança proporcionada pela matematização do mundo. “Números não mentem”, é bem verdade, mas reduzir o mundo a números é já mentir. Minha cama ou meu escritório não são números, e qualquer redução deles a números vai deixar de fora o que faz deles algo importante para mim. Eu não sou um número, nem posso ver minha esposa como um número. O que amo nela não é quantificável, o que me faz sonhar com minha cama quando estou como agora às voltas com uma gripe desagradável não é nem poderia jamais ser quantificável. Não é dissecando um sapo que se descobre o que é ser sapo, e não é com uma estatística que se descobre o que é verdade. A partir de Descartes, porém, passou a ser pensamento comum que só existe o quantificável. Se os cosmonautas soviéticos sobem ao espaço e não vêem Deus, crêem haver provado Sua inexistência. Se um político engana 51% do eleitorado e é eleito, crê que sua autoridade vem do povo. Se há escolas e hospitais gratuitos e todo mundo tem casa e comida (o ideal de conforto burguês, cristalizado em um determinado momento; no próximo talvez seja necessário ter um telefone celular, ou até mesmo um laptop com conexão de banda larga à Internet), crê-se que todos vivam bem (ainda que a Suécia bata a cada ano os recordes de suicídio de jovens...).
O segundo problema causado pelo pensamento cartesiano é o trancamento do homem em si mesmo. Occam já havia começado o processo ao negar que haja o universal fora do indivíduo. Lutero havia aplicado à sociedade cristã (temporal e espiritual) o princípio de Occam ao negar a Igreja e a santificação do homem. Descartes dá mais um salto neste processo, ao fazer com que a idéia, o pensamento humano, seja considerada mais digno de crédito que, por exemplo, a própria existência física do homem ou, mais ainda, a existência de algo além da mente do homem. Afinal, o pensamento para ele é direto, está aí, funda até mesmo a constatação de sua própria existência; todo o resto depende, em última instância, da atuação de um deus ex-machina e não é imediatamente seguro. Criou-se uma fortaleza inatingível: a fortaleza do pensamento. O homem passa a ser uma mente de proveta a interagir com outras de cuja existência ele só pode ter alguma segurança por meios praticamente miraculosos e sempre indiretos. A idéia passa a ter preponderância sobre a prática.
Cria-se assim um monstro, que nunca mais deixou de assombrar o Ocidente: a Razão. Para os cristãos clássicos, a razão era uma operação intelectiva da alma humana, e só. O homem raciocina por ser homem; a idéia de que o raciocínio venha a fundar o reconhecimento da existência de alguém ser-lhes-ia completamente alheia. A partir de Descartes, porém, a Razão (freqüentemente grafada assim, como nome próprio) passa a ser anterior ao homem. Não mais raciocinamos por sermos homens, mas somos homens por raciocinarmos ou, pior ainda, somos homens por entrarmos no raciocínio de outrem, de quem nos reconhece como tal.
Após mais de cem anos de guerras religiosas, algo parece claro a muitos ocidentais: religião é algo incerto, se não daninho. O pensamento religioso acaba sendo absorvido e subsumido por pensamentos sociais ideais, por raciocínios que pressupõem dados de por exemplo moral ou comportamento social da tradição cristã ou do protestantismo sem contudo assumir como seus estes sistemas doutrinários. Pelo contrário, aliás: o agnosticismo, ou mesmo o ateísmo descarado, passam a estar na ordem do dia.
Duas Revoluções varrem o mundo com seus reflexos; duas revoluções procuram re-ordenar o existir dos homens a partir da Razão, tendo a Razão por princípio, meio e fim último.
A primeira é a Revolução Americana: os colonos ingleses protestantes na América do Norte revoltam-se contra a metrópole e erigem sua República. Como protestantes que são, a idéia de hierarquia e centralização de qualquer tipo lhes é repugnante. Assim, o sistema que desenham é altamente descentralizado: o indivíduo reina, e cada casa é um castelo. O governo central tem poucos e fracos poderes, e a interação pretensamente racional entre os indivíduos é o que deve proporcionar a ordem na sociedade: é o capitalismo em sua primeira forma estabelecida. Os Estados Unidos da América, nome da nova nação, são compostos por Estados independentes unidos em uma Federação, com cada estado e a própria federação sendo dotados pelo conjunto dos indivíduos que neles habitam de alguns poucos e limitados poderes. É o primeiro Estado moderno, e até hoje o mais moderno dos Estados, por não ser baseado nem no direito de sangue (como na Alemanha, onde é alemão quem é filho de alemães) nem no direito de solo (como no Brasil, em que brasileiro é quem nasce aqui), que por sua vez pressupõe a adesão a uma cultura nacional. Em outras palavras, é a primeira nação estabelecida por contrato: para tornar-se americano basta aderir ao contrato americano, a jogar segundo as regras estabelecidas, a unir a sua mente-de-proveta às mentes-de-proveta que fazem a América. Não há uma América anterior aos americanos, como não há sequer um Estado central anterior aos Estados que se unem para formá-lo.
A segunda é a Revolução Francesa: o absolutismo monárquico europeu, decorrente da refundação territorial das nações como Estados com base em suas fronteiras religiosas, colocara enorme e desproporcional parcela de poder nas mãos dos reis. A Revolução Francesa faz “apenas” uma mudança no sistema, retirando o rei e colocando em seu poder “o povo” (leia-se a burguesia), que em “liberdade” (leia-se perpétua modificação ou busca de modificação da situação de vida atual), “igualdade” (leia-se abolição de qualquer hierarquia) e “fraternidade” (leia-se união natural através da Razão, negando a possibilidade de comunhão em Deus), orientado pela Razão (uma prostituta nua chegou a ser coroada “Deusa Razão” no altar-mor da Catedral de Paris), buscará reordenar a sociedade.
Qual será, porém, a orientação desta “re-ordenação”? A única possível: a idéia. Surge neste momento o que mais tarde seria chamado “ideologia”: uma idéia de como deve ser a sociedade, imposta a ferro e fogo à realidade. É o pensamento visto como anterior ao ser, e o ser sendo (ou visto como devendo ser) modelado pelo pensamento. É-se homem quando se é visto como homem; os nobres não o são, por exemplo, e à guilhotina eles são mandados em massa. Mais tarde isso acontecerá com os judeus sob Hitler, com os burgueses e outros endinheirados sob Stálin, etc.
Notemos porém a diferença básica entre as duas Revoluções, ocorridas com apenas dez anos de diferença e contando, ambas, com a participação de alguns dos mesmos personagens: a revolução ocorrida em terras protestantes nega a hierarquia e prima pela descentralização, enquanto a ocorrida em terras antes católicas faz o oposto exato, centralizando o máximo o governo, proibindo as línguas e dialetos regionais, chegando ao ponto de chamar de “departamentos” as subdivisões administrativas da França.
Mais ou menos de forma concomitante a estas revoluções, na atual Kaliningrado (enclave russo no território polonês), então uma cidade alemã, Immanuel Kant (1724-1804) arremata a obra destruidora de René Descartes. Fechando de fato a pequena saída deixada por Descartes (o deus ex-machina que de alguma forma garante o conhecimento do Outro), Kant redefine todo o conhecimento humano ao considerar que não podemos jamais conhecer algo exterior a nós em sua essência; conhecemos apenas o que nos chega como fenômeno, sem que jamais tenhamos a capacidade de conhecer algo em si; podemos apenas construir uma sua representação dentro de nós, fazendo assim qualquer ontologia virtualmente impossível.
Em outras palavras, Kant nega que o homem possa conhecer outro homem, possa conhecer uma montanha, possa conhecer, em suma, o que quer que esteja dentro dele. Ele lidaria apenas com “imagens mentais”, não com realidades cognoscíveis. A moral, por exemplo, deve partir de dentro do homem e não deve, para ele, tem um objetivo (o Sumo Bem, a ordenação a Deus, o que quer que seja). A religião é apenas um veículo para a propagação da moral, uma camada de açúcar a adoçar a moral verdadeira, que é a moral do dever, a moral dos imperativos categóricos (faça o que deveria ser regra universal), a moral, em última instância, que não depende do sujeito, do objeto e da intenção. Assim, ele fecha a porta que Descartes deixara aberta, e a idéia subjetiva passa a poder reinar soberana, reformando e manipulando à vontade a realidade objetiva pretensamente incognoscível.
Com isso surgem vários fenômenos tristes:
No campo da política, surge em toda a sua força o Estado-Nação, tornado coeso por força de leis aplicadas por um governo central. Esta divisão só agora começa a esboroar-se, com a ação das Ongs (Al-Qaeda, Greenpeace, movimento Pró-Vida...) e uniões supranacionais (mercosul, união européia...). Do Estado passa a vir a identidade: passamos a ser brasileiros por sermos reconhecidos como tal pelo Estado, por exemplo, o que faz do controle de passaportes nas fronteiras uma realidade onipresente em nossos tempos.
No campo da guerra surge a guerra moderna, ou guerra total, em que exércitos de conscritos e armas de destruição maciça enfrentam-se com números inauditos de mortos e destruição igualmente maciça de propriedades.
No campo da religião, surge a onipresente tentação de idolatrar o homem ou, mais ainda, a si mesmo, ao “deus dentro de si”, no lugar de adorar a Deus.
No campo das relações humanas, a teórica existência decorrente da razão faz com que se negue toda e qualquer ontologia: as pessoas passam a ser o que elas fazem, não mais quem elas são. O matrimônio, por exemplo, passa a ser visto não como uma união de duas pessoas, mas como um contrato mútuo de exclusividade sexual (o que abre a porta para o dito “casamento gay”, por exemplo). O cônjuge passa a ser quem tem relações sexuais com a pessoa e mora na mesma casa (ações), não uma determinada pessoa. Isso abre a porta para o divórcio, etc., etc.
No campo da vida humana em geral, a coisa fica ainda mais grave. Atingida por esta estranha fantasia solipsista, a sociedade passa a ser definida quase como uma extensão (ou um substituto) de quem a governa. Em uma sociedade democrática, espera-se e considera-se certo que os desejos por mais fantasiosos que sejam da maioria tornem-se lei. Em uma sociedade menos democrática, ou no confronto político ou militar com outras sociedades (não pode haver democracia em tempos de guerra), os exércitos e os próprios habitantes das localidades atingidas passam a fazer as vezes do que, em sociedade mais sã, seria feito pelo pecado ou pela graça divina. Ataca-se o inimigo como quem ataca o pecado, com bombas incendiárias, bombas atômicas, bombas de fragmentação. Vê-se a guerra, o morticínio, como quase ação da graça no corpo mítico coletivo do Estado.
Ocorreu, assim, uma substituição da busca do infinito em Deus pelo homem por uma busca de domínio não mais de si com o auxílio da graça, mas de todo o mundo com o auxílio da técnica. Não se busca mais a oração perfeita, mas o mais novo telefone celular. “Novo” passa a ser sinônimo de “melhor”, e o “progresso” passa a ser presumido (daí vêm o positivismo e seu filho supersticioso, o espiritismo, assim como a teoria da evolução, etc., etc., etc.). A técnica, porém, uma vez desencadeada, toma as rédeas. O nível de conforto material atingido pela sociedade européia do século XIX muitíssimo superior a qualquer coisa que tenha vindo antes hoje em dia apavoraria qualquer pessoa de classe média: não havia água quente ao rodar uma torneira, não havia eletricidade, ônibus, automóveis, aparelhos de som, telefones (menos ainda celulares), etc. Uma invenção, porém, chama outra de tal modo que hoje seria impossível tentar como tentaram os ludditas durante a Revolução Industrial e o Unabomber durante a Revolução da Informação paralisar o chamado “progresso”.
O nível tecnológico e a dependência deste conforto tecnologicamente proporcionado e tornado, por sua disseminação, algo considerado necessário só fez crescer, e crescer, e crescer. Isto ocorre, contudo, apenas dentro do sistema capitalista, em que o crescimento espiritual, como vimos acima, foi substituído pelo aumento do conforto material. A competição pelo crescimento material faz com que este nível de conforto cresça, cresça sempre, tornando-se a partir de um certo ponto indispensável. Hoje em dia, por exemplo mais ainda devido à tendência cartesiana de ater-se apenas ao quantificável o nível de conforto material de um rei medieval seria considerado abaixo, muito abaixo, do nível de miséria mais absoluta.
O nefando brado de guerra “arroz, feijão, saúde e educação”, assim como outras demandas “de dignidade humana básica” da sociedade hodierna, como água quente encanada, sistemas de saneamento público, vacinação, desinsetização ou desratização, etc., são já um nível de conforto burguês muitíssimo acima dos sonhos mais grandiloqüentes do mais miliardário dos revolucionários do fim do século XVIII. O que não era ainda sequer um sonho hoje já é “dignidade humana básica”. Entra então em ação o ainda mais hediondo parasita do já asqueroso sistema capitalista: o comunismo. Enquanto o capitalismo substitui Deus pelo dinheiro e a salvação pelo conforto material, o comunismo e seu primo penteadinho chamado socialismo, sem perceberem que o conforto burguês que julgam indispensável à dignidade humana tal como a concebem é decorrência do sistema capitalista e dele é indissociável, propõem cristalizar este conforto em um determinado nível, tendo-o sempre como fim último, à semelhança do capitalismo de que são parasitas.
Chega a ser engraçado, por exemplo, percebermos como hoje em dia, no sistema capitalista mais puro, os mais pobres têm um nível de conforto material muitíssimo superior ao nível de conforto considerado excessivo e luxuoso dos mais ricos dentre os ricos do tempo do início do comunismo. Mesmo os Tzares da Rússia, com suas fortunas gigantescas, não podiam apagar a luz com um toque em um botão e em seguida refestelar-se em uma poltrona para assistir TV com o controle remoto nas mãos: não havia luz elétrica, nem TV, muito menos controle remoto. Até mesmo suas poltronas não tinham um desenho lá muito ergonômico...
O comunismo, assim, consiste em manter o erro (a substituição da busca do infinito em Deus pela busca do conforto pelo consumo infinito, pelo enriquecimento infinito), cristalizando-o porém em um determinado nível. Assim, a finada União Soviética cristalizava o nível de conforto das pequenas elites rurais da virada do século XIX ao XX quando de seu fim, quase um século depois, enquanto nos Estados Unidos, o país capitalista por excelência, os mais pobres dos pobres, na mesma época, já dispunham de nível de conforto maior. O problema, na verdade, é que ao retirar do sistema o motor que o impulsiona (a cobiça-como-princípio-civilizatório do capitalismo, sucedâneo fajuto da busca da santidade), a tendência é a dissolução.
O próprio sistema materialista partilhado pelo capitalismo e por seu parasita, contudo, já causa problemas gravíssimos. Isto ocorre como conseqüência necessária do mau direcionamento dos esforços humanos: ao dirigir a quase ilimitada capacidade potencial humana para meros objetivos materiais, tidos como fim último, o sistema materialista vê-se forçado a ordenar e re-ordenar sucessiva e exaustivamente algumas partes da Criação, causando com isso uma desordem crescente em outras. É como apertar um balão: quando se o comprime em um lado, o outro infla. Assim, por exemplo, ao aumentar o controle sanitário, ambiental, etc., nas cidades, cria-se ao mesmo tempo uma vasta gama de problemas ambientais em escala global; ao procurar controlar excessivamente as sociedades ou incentivar e criar condições para que haja ilimitada capacidade de mudança de posição dentro de cada sociedade (o que fazem, respectivamente, o comunismo e o capitalismo), trabalhando sempre no sentido de adequar a realidade a uma idéia (ou ideologia) e não a idéia à realidade, fazendo com que a coisa se ajuste ao intelecto e não o intelecto à coisa, são criadas fortíssimas disfunções sociais generalizadas dentro das mesmíssimas sociedades: crise dos matrimônios, homossexualismo, pornografia, violência desordenada, suicídios...
O problema se torna ainda mais grave quando percebemos que os pensadores modernos não atinam com sua raiz. Alguns percebem que a técnica virou um fim em si; outros percebem que a escolha do consumidor não é assim tão livre e racional quanto parecia; outros, ainda, percebem que o modelo igualitarista (de cristalização do nível de conforto) não se sustenta. Nenhum, porém, percebe que o problema é a preponderância cartesiana da idéia sobre a realidade, a matematização cartesiana dos fenômenos culturais e sociais, assim como a própria negação do indivíduo real (substituído por um número sob o comunismo e por uma mente-de-proveta em busca de ascensão social e consumo desenfreado no capitalismo). Ambos vêem o homem como uma mente-de-proveta criada em chocadeira, ignorando ou mesmo negando o seu ser real: o homem só é homem enquanto é reconhecido como homem pelo Estado, e quando este não o reconhece como tal ele é enviado a Auschwitz, à Sibéria... ou para a cadeia, nos EUA.
Todo o pensamento moderno segue o mesmo erro de base, e substitui o reconhecimento da ordenação natural da sociedade por uma ideologia que deveria modelá-la. Temos Hegel, que nada mais é que um eclesiólogo sem Deus e sem Igreja; temos Heidegger, um teólogo da Graça sem Deus e sem a Graça; temos Marx e Adam Smith, um par de sacramentologistas que não percebem que o sinal é eficaz; temos Nietzsche, um pelagiano que não sabe o que é Salvação, não quer saber e tem raiva de quem sabe...
O que temos, em suma, é o que acontece quando é o homem que se crê “Eu Sou”, atribuindo à função intelectiva a absurda prerrogativa de base e estabelecimento de seu ser como ser-em-si. O que é o avião e a teleportação dos sonhos de ficção científica senão sucedâneo barato da onipresença? O que é a televisão, o que é o telefone mais ainda o celular portátil, microscópico, quiçá embutido em um dente senão sucedâneos ainda mais rasteiros da onisciência? O que é, ainda, a ideologia senão uma tentativa barata de fazer da palavra humana substituto do Verbo divino?
O que é, em suma, a técnica senão uma tentativa desesperada de fazer cumprir a promessa não a de Deus, a da Serpente -: “sereis como deuses”?
Petrópolis, dia de São Bernardino, 2003
©Prof. Carlos Ramalhete - livre cópia na íntegra com menção do autor
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