Em meios liberais, é comum dizer que o o Cristianismo é a causa do capitalismo, ou seja, que este é desenvolvimento necessário da ordem social criada por aquele. Creio que o problema deste raciocínio é a confusão entre causa material e causa eficiente. A causa material, ou seja, a situação social que indiretamente possibilitou o surgimento do capitalismo, é sem dúvida a sociedade ordenada cristã. Daí a dizer que ela é a causa (eficiente) do Capitalismo, porém, há um pulo sem o menor sentido. Esta situação apenas possibilitou o surgimento de uma heresia (o protestantismo), que por sua vez gerou uma mentalidade herética que é a causa eficiente do capitalismo.
Causa material é a condição necessária para algo. A causa material de uma escultura é o bronze; de um câncer é o corpo que será atacado por ele; de uma família é um homem e uma mulher... É a matéria-prima que pode ser atualizada em uma dada forma por uma causa eficiente (um escultor que toma o bronze e faz dele uma estátua; um agente carcinogênico que ataca o corpo; um Sacramento que faz do casal marido e mulher...). Quando se fala de "causa", em língua comum, normalmente se está falando de causa eficiente e não de causa material. Ora, o articulista, sem traçar esta necessária distinção, trata a causa material (ou seja, a condição necessária para algo) como causa eficiente (ou seja, o que fez algo passar a existir). Isto é um erro grave.
O protestantismo (no caso em sua vertente calvinista) não poderia ter surgido sem o respeito à lei e à ordem natural que definem uma sociedade cristã. Vale notar, inclusive, que este respeito, conquistado a duras penas pela Igreja ao longo do processo civilizatório da Europa, é tomado pelo protestantismo como uma condição natural, tão natural quanto respirar ou beber água. Daí a facilidade com que, por exemplo, os EUA acham que vão instituí-lo no Iraque, no Afeganistão, etc.; só é possível achar que vai ser fácil fazê-lo quando se ignora a necessidade da cristianização prévia da sociedade. É uma ignorância crassa dos princípios e fundamentos que tornam possível uma situação.
Assim, o protestantismo precisa, como situação prévia que torna possível a sua existência (causa material), de uma sociedade cristã: ele é uma perversão desta sociedade, em que os princípios são abandonados mas as conseqüências são mantidas como supertições. Chesterton, a propósito disso, dá-nos o exemplo da antropofagia: a sociedade (capitalista) dos países protestantes, em seu materialismo, tende a negar a diferença essencial entre o corpo humano e o corpo dos bichos. Daí vêm maluquices como o vegetarianismo, a cremação de cadáveres, a negação da oração pelos mortos, etc. O tabu do canibalismo, porém, continua como superstição, ou seja, como tabu desprovido de justificação em princípios.
Este é o caso geral do protestantismo, que depende de todo um caldo de cultura cristão (que implica em respeito à lei, etc.; em suma, em tudo que o autor do artigo aponta como "causa" do capitalismo). Com o tempo evidentemente vai diminuindo tremendamente o efeito desta civilização, exatamente pela ausência de princípios a guiar a sociedade que continuou a afirmar as conseqüências destes princípios como superstição, negando contudo os próprios princípios. É por isso que os países protestantes, por exemplo, já legalizaram em sua maioria o aborto, estão em vias de legalizar ou ao menos de dar plena aceitação social à sodomia... É o caminho rumo ao paganismo que é traçado pelo afastamento dos princípios católicos que tem como causa eficiente, entre outras coisas, o próprio capitalismo.
Para que da civilização cristã surja o capitalismo propriamente dito é necessário que haja justamente este abandono dos princípios societais em que uma civilização católica está baseada. É necessário que haja a total inversão de prioridades efetuada pelo calvinismo, com sua asquerosa moral do trabalho e sua aplicação à ordem material daquilo que em uma sociedade cristã é aplicável apenas à ordem da graça. Esta sim é a causa eficiente do capitalismo; não é possível haver capitalismo se o enriquecimento material não for visto como um fim a ser buscado, se o trabalho pelo trabalho (ou em vista de enriquecimento) não for considerado algo "nobilitante".
Ora, isto é uma inversão total da visão cristã clássica, segundo a qual o trabalho é algo fundamentalmente degradante, uma maldição ligada ao Pecado Original. Na visão cristã clássica trabalha-se o necessário para viver, e só. Melhor seria se ao invés de trabalhar fosse possível passar os dias em contemplação e oração, por exemplo (vocação muito mais alta). A mentalidade calvinista que gera o capitalismo, porém, é a mesma mentalidade que gerou a heresia americanista, que nega o valor da contemplação e tende a valorizar a caridade exclusivamente como *trabalho de* caridade, não como amor verdadeiro pelo irmão desamparado, por exemplo.
Assim, o articulista tem razão ao atribuir à civilização católica as condições necessárias para que possa haver capitalismo (ou seja, em considerar a sociedade cristã causa material do capitalismo, como o bronze o é da escultura, o corpo do câncer, etc.). Isto, porém, ocorre de maneira extremamente indireta: só foi possível o surgimento do capitalismo no Ocidente cristão porque o capitalismo é a decorrência de uma heresia que atacou o Corpo Místico de Cristo. Não seria, assim, possível que ele surgisse na Índia ou nas Arábias por não haver lá o cristianismo de que pôde surgir, como um câncer, esta heresia. Ao mesmo tempo o autor faz confusão ao negar a necessidade desta heresia, que - como demonstrou Weber, que ele nega sem argumentação efetiva - gerou a mentalidade que tornou possível a ereção deste sistema que eleva a cobiça a princípio civilizatório.
Isto provavelmente é fruto da visão dualista (também ela de origem calvinista...) que tende a considerar que a escolha é só entre Estado pequeno (visto como sinônimo de capitalismo) e Estado gigantesco (característico do socialismo, outra perversão da sociedade cristã), sem perceber que o Estado pequeno antedata em séculos o capitalismo. Na verdade, a não-ingerência do Estado na micro-organização da sociedade é sim um princípio católico. O problema é quando uma heresia se aproveita deste princípio para substituir o amor à posição em que Deus colocou cada um no mundo para que nela se busque a salvação por um amor à ascensão social. Esta substituição da ação na ordem da graça pela ação na ordem estritamente material, que só poderia surgir em uma sociedade cristã por ser uma perversão do cristianismo (não uma perversão do hinduísmo, do Islã, do budismo, etc.) é a causa eficiente do capitalismo. Dizer que a sociedade católica é "a causa" do capitalismo é como dizer que a existência de bronze é "a causa" da arte da escultura, ou que a existência do corpo é "a causa"do câncer: é uma confusão entre causa material (bonze, corpo, sociedade cristã) e sua informação (ou deformação, transformação...; uma nova forma aplicada a uma matéria preexistente que pode recebê-la) por algo alheio à forma original (escultor, cancerígeno, heresia calvinista).
©Prof. Carlos Ramalhete - livre cópia na íntegra com menção do autor
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