Escreveram-me, dizendo que enquanto o liberalismo trata apenas do conforto material, a Igreja trata do conforto espiritual e da salvação das almas. Não haveria, assim, contradição entre estes dois fins, mesmo porque numa sociedade de economia de mercado se alguém decide viver como asceta no meio das montanhas pode fazê-lo. Não haveria assim nada que nos impedisse de viver segundo a fé cristã numa economia de mercado.
Respondi que:
Mais ou menos, Marcelo, e é esse o problema de defender o liberalismo. Realmente não há nada que impeça alguém de virar anacoreta em uma sociedade liberal, enquanto é realmente impossível fazê-lo em uma sociedade socialista. O problema, porém, é de fins da sociedade. A sociedade liberal, para que funcione, tem que ter como fim a busca do conforto, o imperativo técnico, etc. Esse é o problema. Se a sociedade busca como um todo um fim indigno de ser o seu, como esse, a vida cristã transcorrerá às margens da sociedade. A diferença é que o socialismo não permite a vida às margens da sociedade, enquanto o liberalismo a permite. Ambos, porém, forçam a Fé às sombras, às catacumbas, aos interstícios. A diferença é apenas a intensidade e os meios do combate.
A sociedade liberal vai contra o princípio de subordinação necessária da sociedade humana à hierarquia celeste; ela coloca como fim da sociedade algo que na verdade é um vício que se deve dela extirpar. Se a escolha é entre liberalismo e socialismo evidentemente o mal menor é o primeiro, mas defender o liberalismo implica necessariamente em defender que a maioria da população não viva segundo a fé cristã, em defender uma sociedade em que viver segundo a fé cristã seja algo visto com maus olhos.
Isto pode ser percebido, por exemplo, na heresia chamada "Americanismo", uma das formas do modernismo, que coloca a contemplação como inferior à ação; isso ocorre porque para o liberal (é uma heresia que, como o nome indica, vem dos EUA, e em sua fase mais liberal, pré-FDR, etc.), por necessidade, a ação, o trabalho material, é o que dignifica o homem. A dignidade é expressa em termos de conforto material atingido através trabalho. Em uma sociedade liberal, isto se infiltra entre os cristãos e mina a fé.
Há, decerto, muitíssimos pontos em comum entre uma sociedade "de mercado" e uma sociedade organizada de acordo com a Sã Doutrina (ou seja, uma sociedade que procura refletir o melhor possível a Jerusalém celeste): a ausência de ingerência governamental no processo econômico, de "caridade" forçada feita à força com o dinheiro dos outros, o direito à propriedade, etc. Estes pontos, contudo, empalidecem diante da diferença crucial, que é de fim, de alvo da sociedade como um todo. A sociedade liberal busca seguir o imperativo técnico (não sei se vc chegou a ler os dois artiguinhos sobre o imperativo técnico que mandei à lista; devem estar nos arquivos) e, mais que tudo, busca a ascensão social de cada homem pelo trabalho. Ora, isso pode até ser tolerável mas não é nem poderia ser objetivo digno da sociedade como um todo, muito menos ao ponto de relegar a um segundo plano, ao foro estritamente privado, a religião.
Em uma sociedade conforme à Sã Doutrina, o que ocorreria (e já ocorreu) é o oposto: o objetivo é a estabilidade social mínima que permite a ascensão à santidade de cada pessoa em sua situação estável. A situação em que a pessoa está é vista como algo fixo, e a priori imutável, ainda que se possa tolerar os que querem "subir na vida" (nesta vida, bem entendido): este desejo de ascensão social, porém, ainda que tolerado, é e deve necessariamente ser algo de foro íntimo. Querer mais conforto que o que se tem pode ser apenas pecado venial, mas certamente não é nem pode ser objetivo da sociedade, seja ele expresso em termos de busca de objetivos materiais de maneira individual, levando aos poucos as camadas inferiores a uma progressiva ascenção algo "atrasada" em nível de conforto, seja em termos de distribuição igualitária destes confortos, ao modelo socialista.
O conforto material, assim, não é nem pode ser algo a ser buscado como fim da sociedade, sim algo que a sociedade deve ser capaz de prover em um nível necessário à sobrevivência (o que exclui desde logo praticamente qualquer coisa tornada normal apenas nos últimos duzentos anos: se essas coisas - eletricidade, gás, água encanada, etc. - fossem necessárias à sobrevivência, logo objeto digno de preocupação da sociedade como um todo, não haveria humanidade - como "frei" Betto pelo jeito acha que não houve - até depois da Revolução Industrial) para que seus membros possam dedicar-se àquilo que é sua verdadeira tarefa e fim a buscar: a salvação das almas. Fazer do conforto material um fim da sociedade como um todo é subverter a hierarquia das necessidades humanas e ir contra a Sã Doutrina.
©Prof. Carlos Ramalhete - livre cópia na íntegra com menção do autor
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