Cuba vista pela Barra

Resenha do livro "Radical, Rebelde, Revolucionário" de Alex Castro.

O escritor barra-da-tijucano radicado em Nova Orleans Alex Castro (que eu saiba, ele não é parente do Fidel) fez uma promoção, em busca de resenhas de leitores direitistas para seu livro "Radical, Rebelde, Revolucionário" (vinte reais o PDF), em que conta impressões de uma visita a Cuba. Como pelo jeito passei no teste e fui considerado reacionário o suficiente, poucos segundos depois de escrever para ele recebi o tal do livro por email. O programinhas mobipocket fez seu milagre de sempre, e o livro virou arquivo .prc (de Kindle), prontinho pra ser lido no celular. Aí li o troço, de enfiada.

Como eu acho que tanto o livro dele quanto a resenha podem interessar a mais gente, fica a dica do livro e segue a resenha.

A primeira coisa que me chamou a atenção; a mim, acostumado com franceses no Rio de Janeiro atrás do Bom Selvagem de Rousseau (conheço um que arranjou um barraco na Mangueira e comprou todos os instrumentos que encontrou, novos!, para fazer uma "open house" onde incessantemente entrariam e sairiam os bons selvagens, malemolentemente derramando sensualidade e boa música. Algo como aqueles bidês pra passarinho beber água no quintal. Nem precisa dizer que o coraçãozinho dele foi partido qdo roubaram todos os instrumentos!) - foi justamente este aspecto "Puxa, sabe, cubano é *muito gente*! da crônica dele. É por isto que eu dou este título ("Cuba vista pela Barra") a esta resenha.

Não posso falar de Cuba com conhecimento de causa real (nunca estive lá!, ora bolas), mas creio que não seja um erro metodológico muito grave projetar um pouquinho a partir do Brasil, que eu venho estudando há sei-lá-quantas décadas. Somando a esta projeção um certo conhecimento livresco (de livros de terroristas brasileiros que fugiram pra lá a artigos de americanos vomitando bile contra aquele satélite soviético no quintal deles, com o livro do Alex como cereja de bolo), acho que dá para escrever um pouco sobre o livro do Alex sem dizer muita besteira.

O livro é bem interessante, exatamente por procurar fugir dos estereótipos vigentes sobre Cuba. Em geral, quando se vê um livro sobre Cuba, ou se tem um libelo pela liberdade (geralmente do tipo de que se goza em Miami) dos cubaninhos oprimidos, ou se tem uma ode ao "paraíso socialista" em que todo mundo tem bons dentes. O Alex tenta fazer algo mais humano, falando do queviu, de quem viu, das mulheres cujos pés fotografou (é, cada um tem a sua mania, já vi piores). A impressão que fica, contudo, para mim é extremamente semelhante à que tenho dos franceses em busca do Bom Selvagem no Rio de Janeiro: olhos arregalados, espantado ao ver o rebolado, engolindo sem pestanejar uma ilusão auto-imposta de humanidade "em estado bruto".

As críticas que eu havia lido na internet desde que ele publicou o livro, há alguns anos, faziam crer que o livro negaria de alguma maneira que os cubanos estejam submetidos a uma ditadura medonha, e coisa e tal. Tinha até uma, na página em que ele oferece a promoção "reaça ganha o livro de graça"
em que o sujeito dizia algo que se pode resumir em "pára de louvar Cuba, e faz como o fulano de Cubano por 30 Dias". Fui ver o tal artigo - de que só li a primeira página -, e depois que li o livro do Alex vi que era a mesmíssima coisa.

O chatinho do artigo lincado tentou viver em Cuba com um salário de cubano oficial. Só que ele não era cubano e - o que é mais importante para nós - portanto não dispunha da rede de contatos que faz com que se possa sobreviver em qqr país de cultura pré-moderna, o que faz a bravata simplesmente não ter sentido. Como costumo dizer, no Brasil dá pra ser obeso mórbido vivendo de esmolas, e em Cuba - ainda que haja menos esmolas, por haver muito menos distribução de riqueza - também certamente mais vale ter amigos na praça que dinheiro em caixa. O cara que tentou viver com um salário oficial partiu do pressuposto moderno e igualitarista de que "money talks, bullshit walks". Já o Alex tentou - e de certa maneira conseguiu - fazer "coisas de cubano", comprando charutos do tipo que eles fumam, andando de ônibus, entrando na fila dos bons selvagens malemolentes pra comprar sorvete, etc. Maravilha; concordo plenamente com ele que é assim que se viaja. Deus me livre do "ônibus brasileiro na Europa - faça 15 países em três dias, com guias falando português". Mas tanto um quanto outro passaram a anos-luz da experiência de viver como cubano. O Alex gostou, queria ficar, não ficou por causa do cachorro e de uma mulher, e coisa e tal. Um monte de cubano saiu, e quando a gente pensa que cubano é como brasileiro, vivendo muito mais em função da rede social que da economia formal (a senhorio dele comenta algo a respeito no livro, ao falar de como ele recebia mais telefonemas que a amiga americana dele), dá para imaginar o quanto é dolorosa a idéia de deixar o torrão natal. Pra tanta gente pré-moderna ir pra longe de casa, da família e do amigos, é que a coisa é feia.

Mas a profundidade da experiência dos dois autores é quase a mesma. É sempre uma tentativa de negação da alteridade (diria o francês: "sou brrasileirro de corraçón!"), mesclada - mais no caso do Alex, pois o outro autor só pensa em dinheiro - com um fascínio algo paternalista pelo Bom Selvagem e sua malemolência. A Barra da Tijuca visitando Cuba parece muito com Toulouse visitando a Mangueira.

A primeira semelhança entre Barra e Toulouse é a aceitação inconteste de categorias modernas. É algo evidente para o francês, mas relativamente raro para o brasileiro. Talvez o fato de o autor ter sido criado na Barra, onde o primeiro crioulo que se vê sem uniforme é sempre uma surpresa (ou era, antes dos jogadores de futebol irem pra lá; mas divago), tendo sido educado em escola cara e cheia de gringos e tendo ido morar num ambente acadêmico americano (mais moderno, impossível) ajude a explicar. Mas o moço engole sem hesitar coisas que fariam qqr brasileiro mais normalzinho ficar com um monte de pulgas atrás da orelha, como a suposta incorruptibilidade dos fiscais encarregados de ver se a pousada está nos conformes, afirmada pela própria dona da pousada. Pra mim, acreditar na palavra dela é como aceitar sem exame ulterior a declaração de que "está tudo bem e o patrão é honesto" feita pelo cara submetido a esses regimes de trabalho escravo em fazendas perdidas no sertão, em que os caras são levados lá e ficam endividados por terem que comprar tudo do dono da fazenda por preços superiores ao próprio "salário".

Do mesmo modo, as categorias binárias da modernidade (por exemplo: "preto" ou "branco", à moda americana e justificando cotas e tudo o mais, quando no Brasil - e provavelmente em Cuba - "preto" quer sempre dizer "mais preto do que eu", sendo um termo relativo, não absoluto) estão ali, incontestes. Reclamações e protestos contra aspectos e funcionamento do sistema (que não diferem muito, em escopo e alvos, dos "Febeapá" do Sérgio Porto no Brasil governado pelos militares) são tomadas por sinal de tolerância com ataques (subversivos) ao sistema, enquanto discursos extremamente semelhantes ao "discurso pra inglês ver" do brasileiro médio (que é "contra a homofobia", por exemplo, mesmo detestando viados) são aceitos pelo valor de face. "Jeitinhos" e tretas que não diferem em quase nada do que é feito cotidianamente pelo brasileiro que não é evidentemente "dotô" ou filho de "dotô" são descritos com fascinação, enquanto ações repressivas que gerariam muxoxos no Brasil e indignação nos EUA são justificadas por supostamente terem um objetivo nobre. O gosto que fica na boca é de uma mistura bastante ingênua de fascinação com a "humanidade" (no sentido de "eles são muito gente, sabe?") dos cubanos com o pior do multiculturalismo ("índios matam um de cada casal de gêmeos, muçulmanos enfiam a mulher toda dentro de uma fronha e norte-africanos cortam fora o clitóris delas, mas é pq é a cultura deles, sabe, quem sou eu para julgar?") aplicado à ditadura do Fidel, como se ela fosse aceitável por ser "a cultura deles". É a mentira de base da modernidade: a construção da utopia que se faz, sempre e necessariamente, pela negação da natureza humana gera um grupo, por vezes até majoritário, que se enquadra o suficiente na fôrma de bolo moderna para sobreviver (graças aos jeitinhos e voltas que esta mesmo modernidade nega e condena), enquanto muitíssimos outros vão pra Auschwitz, Sibéria, Cook County Jail... ou Miami, se tiver sorte. Sério, gente, pra enfrentar tubarão pra fugir pra Miami é que a coisa está muito ruim, mesmo. :)

A impressão que me fica do livro é que Cuba é um Brasilzinho miúdo, cercado de tubarões, em que se conseguiu instalar uma ditadura medonha com apoio soviético. Aí o povo, exatamente como o nosso faria, sobrevive fazendo um discurso duplo (do tipo que exaspera o Olavo de Carvalho e o faz dizer que não dá pra confiar em brasileiro, etc., mas que na verdade é um fantástico mecanismo de sobrevivência cultural e pessoal), falando as besteiras que é de bom tom falar mas fazendo o que sempre se fez, por baixo dos panos. É por isso que eu digo que aqui não seria nunca possível instaurar uma ditadura dessas.

Bom, se a gente pega a história recente das Américas, já da para ter uma idéia da dificuldade. Nos anos 60 e 70, as mesmas forças que dominaram aquela ilhazinha cercada de tubarões tentaram fazer horrores parecidos por todo lado na América Latina. Aí os milicos, aqui e no resto, tiveram que entrar em ação para garantir a ordem. Na Argentina, paizinho minúsculo ocupado principalmente por gado de corte e pelo ego do Maradona (que, aliás, é cubanófilo), mataram dezenas de milhares. No Chile, menor ainda (é aquele país que parece o Marco Maciel), idem. No Brasil, muito maior em termos territoriais e populacionais, mesmo usando as contagens feitas pelos próprios subversivos, que incluem comunista morto por comunista, terrorista que aproveitou a carteira de identidade falsa pra fugir pra Mato Grosso e virar comerciante, etc., foram poucas centenas de vítimas. A nossa cultura tem mais rebolado, tem mais soluções não-violentas; o esquema binário de uma ditadura moderna nunca permearia todo o modo de viver do brasileiro. O outro problema, bom, basta olhar um mapa. Isso daqui, decididamente, não é uma ilhazinha cercada de tubarões. Ninguém, nem com um exército do tamanho do chinês, conseguiria tomar o poder e implantar uma ditadura sem o apoio maciço da população.

Mas entonces, voltando ao livro, é um bom relato de viagem, bem escrito (ao contrário da ficção dele, cujos diálogos são tão artificiais que praticamente impedem a leitura; o homem tem talento - e muito - é para a não-ficção), com crônicas bastante interessantes. Recomendo a quem esteja querendo saber algo sobre Cuba que fuja do político - tema que o autor ignora à moda multiculturalista do "quem sou eu para julgar". As ressalvas acima, embora a meu ver relevantes, não são graves ao ponto de fazer com que o livro não dê algumas horas agradáveis de leitura.

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©Prof. Carlos Ramalhete - livre cópia na íntegra com menção do autor
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