São duas decorrências do milenarismo das seitas protestantes americanas. Aí vc vai perguntar "o que é milenarismo", não?
É o seguinte: algumas seitas protestantes americanas, pouco depois do estabelecimento daquela nação, passaram a adotar uma nova visão do Apocalipse, baseada em supostas "descobertas" na Bíblia de um "pastor" lá deles. Eles acreditavam que *antes* de Nosso Senhor voltar em glória haveria um período de paz perfeita que duraria mil anos. O resultado é que seria necesário criar esta paz para, na verdade, permitir a Parusia mil anos mais tarde.
Ora, os Estados Unidos são um país literalmente arrancado à força (tanto dos índios qto dos franceses e espanhóis e da própria natureza). O povo americano sempre teve o hábito de considerar que as coisas devem ser feitas, sem esperar que algo caia do céu. Nesta visõ cultural, faz sentido que surja uma tese que coloca a parusia como dependendo basicamente de esforços humanos, não?
Bão, aí junta isso com o calvinismo de base da cultura americana, e o caldo engrossa. Para o calvinista, a pessoa é predestinada ao Céu ou predestinada ao Inferno. Os atos e opções não podem salvar, e na verdade não existe livre-arbítrio. O resultado é que a sociedade sempre é dividida entre os que vão para o Céu e os que vão para o Inferno, garantido.
A maneira de reconhecer quem vai para o Céu e quem vai para o Inferno é simples: quem vai para o Céu comporta-se de maneira "adequada", além de receber graças de Deus, e vice-versa. Assim, o sujeito que bebe, usa roupa colorida, fuma, gosta de música, etc., vai para o Inferno garantido. Não é que estes atos o condenem; ele simplesmente foi predestinado para o Inferno e estes atos mostram isso. Não há nada que ele possa fazer.
Bão, e quando junta uma coisa com a outra, predestinação e milenarismo pré-parúsico, a coisa engrossa. O que surge é um movimento que procura retirar da sociedade todos os sinais "infernais". Esta primeira etapa é a que a gente vê em filme de caubói, quando vão aquelas senhoras pregar a abstenção completa de álcool, lembra?
Este movimento, porém, foi aos poucos perdendo o seu componente especificamente religioso (pois afinal ele depende mais de componentes da matriz de pensamento americana que de uma leitura literal da Bíblia, por exemplo), sem contudo perder a sua força.
Cresceu aos poucos, e continua crescendo "por baixo dos panos" a visão deque é necessário impor a ferro e fogo uma sociedade em que não haja os "sinais do Inferno". a diferença é só que não se fala mais de Céu e Inferno, etc. Hoje em dia normalmente o apelo é à saúde (do corpo, do planeta...), mas o empenho em proibir cigarros, álcool, festa, dança, alegria... só é superado por duas coisas: o tamanho do Estado, que por ter a nobre missão de fazer um paraíso na terra preparando os mil anos de paz cresce desmesuradamente e é visto como devendo coibir todo e cada pequeno erro (o que é ondenado pela doutrina da Igreja), e o frenesi contrário dos "condenados ao Inferno".
Veja - em filmes americanos já dá para ter uma boa idéia - como para os gringos coisa é oito ou oitenta. Ou o sujeito não fala nem palavrão nem, sequer, expressões religiosas (consideradas falta de respeito), ou não fala uma frase sem três ou quatro palavrões. Isso ocorre pq cada um dos personagen identificou-se inconscientemente como o "sr. certinho" que vai para o céu ou "o perdido" que vai para os quintos e não tem escapatória.
O resultado é que no protestantismo de hoje - voltando a nosso ponto inicial - há em enorme medida a presença deste puritanismo (que infelizmente tbm contagia alguns setores da RCC; quem nunca viu um carismático que só ouve música com letra religiosa, como se um rock ruim que usa o nome de Deus em vão fosse mais bonito que um samba do Cartola que fala de amor?!) e desta estatolatria milenarista pré-parúsica.
Estas visões, expressas em campanhas que procuram fazer o Estado proibir (estatolatria decorrente da noção de que não há livre-arbítrio e o estado age no lugar de Deus) isso ou aquilo com normalmente o pretexto da saúde (seja do corpo - cigarro pode causar doenças, logo é forçosamente abominável -, seja do planeta - DDT fica presente por décadas, logo é abominável... mesmo se isso signifique a volta da dengue e da febre-amarela -; em todo caso a base puritana é a mesma), acabam fazendo parte do "caldo de cultura" em que vivemos.
Quando isso porém tenta se superpor a uma cultura católica (ou seja, radicalmente anti-puritana e radicalmente comunitária, com a responsabilidade individual como fulcro e a obediência moral como modo de organização), temos uma bela confusão em mãos. A obediência moral (ou seja, obedecemos porque é justo obedecer, não pq "está na lei e pronto", e desobedecemos ao que é imoral) é condenada em nome da "ordem" (na verdade da esperança milenarista); o comunitarianismo 'substituído po uma organização imposta por lei (que vem da nega';cão do livre-arbítrio), a responsabilidade individual desaparece (pois sem livre-arbítrio não há responsabilidade, e os "condenados ao Inferno" tem mais é que serem subjugados mesmo para não impedirem o Milênio) em nome da "lei"...
O resultado é que o que forma a base da sociedade católica é condenado e visto como resistência ilícita a um processo de ordenação da sociedade.
Note, por favor, que a imensa maioria das pessoas que têm esta visão simplesmente "engoliram" o que a sociedade americanizada modernista tenta passar como certo. Elas ficariam, em sua maioria, horrorizadas ao ver as premissas que baseiam os raciocínios que defendem. Isso não impede, porém, que estes raciocínios dependam destas premissas sobre as quais eles não refletem (o americano não refletem sobre elas por fazerem parte de sua matriz de pensamento a tal grau que não as percebem, como não percebemo o cheiro de um ambiente em que estamos há muito tempo; os brasileiros que as adotam não refletem por puro hábito de não refletir), o que faz com que eles acabem forçando o indivíduo a negar a Doutrina da Igreja, ainda que tacitamente, para não abrigar duas doutrinas contraditórias ao mesmo tempo.
©Prof. Carlos Ramalhete - livre cópia na íntegra com menção do autor
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